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Sobrevive-se

Sobrevive-se

29
Jun20

Depois queixem-se.

Costa

Uma organização política de direita manifestou-se, há dias, pelas ruas de Lisboa. Deixando de lado a produção que esse facto suscitou por parte do comentariado profissional e da comunicação social (de conteúdo largamente fácil de antever, dadas as orientações dominantes em mais de quatro décadas de intellingentsia e jornalismo e, por estes dias, a compra de fidelidades ou submissões a troco da sobrevivência), leio por aqui - até vindas de pessoas que aparentam usualmente moderação e bom senso no que escrevem - declarações que, ao mais puro estilo do panfletarismo revolucionário, optam pela liminar desconsideração de quem a organizou e nela esteve presente. A coisa passa por exemplo pelo uso do nome em diminutivo claramente menorizador, à posição da máscara equiparada a peça de estética capilar, ao braço captado - em breves segundos e em sequência que como é óbvio se omite - em posição comprometedora à luz do puritanismo presente, à presença de certa figura histriónica e dotada da densidade apropriada para o sucesso, consta, no facebook (que as haja por todo o lado e a propósito de tudo, não parece importar no destaque a esta dado). À forma, enfim. Curiosamente do conteúdo e sua crítica - menos ainda serena e livre dos chavões do estilo - nada li. Não deve ser preciso: como não se enquadram no arco político consagrado, não prestam. Porque não prestam.

 

E se calhar não prestam. Ainda assim recordo há uns anos, quando por aí surgiu, ouvir gente afirmar que jamais votaria no BE; mas que era útil que ganhasse espaço na política portuguesa, pois serviria como espécie de consciência, de grilinho falante. Uma entidade muito perigosa se chegasse ao poder, mas de resto útil, se contida, para revelar na praça pública os deslizes, fraquezas, tentações e injustiças de um regime natural e fatalmente dado a vícios veniais e nepotistas. Do PC diziam o mesmo, reconhecendo-lhe alguns, sobre isso, ainda a "gravitas" de um passado sempre credor de respeito. O horror associado ao passado - e ainda presente - de onde provinham essas organizações, nunca por elas explicitamente rejeitado e recorrentemente invocado com orgulho (vejam-se por exemplo as coreografias e adereços usuais no solene evento litúrgico de cada Setembro), o desprezo professado por alguns seus líderes, e já no tempo das nossas vidas, da nossa democracia, pela democracia de tipo ocidental não parecia causar a essas pessoas o menor arrepio.

A estes então, nada a dizer. Ou o que haja a dizer sê-lo-á sempre no pressuposto de uma sua legitimidade, bondade, imprescindibilidade democrática inatacáveis. Deles se discordando, defender-se-á sempre o seu direito a existir e difundir as suas ideias. É a democracia, afirmam. Mas que surja uma voz recíproca, do lado alegadamente oposto do tal centrão (alegadamente e carecendo de fundamento: não parece que nela se advogue ou conviva tranquila, sonora e orgulhosamente com passados de regimes totalitários e de extermínio revolucionário de massas), provoca de imediato um sonoríssimo toque a rebate, um rasgar de vestes incontido, enérgicos protestos que vão desde o anúncio de uma invasão de bárbaros ao recurso ao ridículo de baixo coturno. É, a priori e sem mais, nazismo e fascismo. É extrema-direita e só a esquerda o pode ser e propagá-lo com orgulho e tranquila na protecção estatal.

Por que se chegou aqui, onde falhou a política - falharam os políticos - dita tradicional, ela e os seus valores, de tão variável aplicação tantas vezes, e que muito democraticamente pretendem direito de exclusividade (cedendo convenientemente à esquerda, claro) nas boas consciências, entrando em histeria quando alguém ousa questionar o estado de coisas, e que tradicionalmente nos tem pastoreado como se sabe? Como recuperar a confiança nessa polílitica tradicional, nos herdeiros de infelizmente irrepetíveis (está desgraçadamente visto) estadistas da reconstrução do pós-guerra? Isso parece questão menor, uma ociosidade sem interesse.

Importante é travar esta gente, este incómodo, que não alinha nas "causas" do momento. Depois queixem-se.

17
Jun20

Está tudo bem assim

Costa

Três anos depois de algo monstruoso e que paulatinamente vai dando em nada, cuja responsabilidade - salvo milagre - acabará solteira ou imputada a um ou outro peão irrelevante e escolhido como cordeiro sacrificial, algo que paulatinamente bem se pode repetir nos próximos tempos, três anos certos ao dia, cá temos Portugal (Lisboa, enfim...), a conquistar não sei que magnífica honraria do futebol. Coisa que deu até, parece, para sessão congratulatória do regime e seus feitos no palácio de Belém.

Uma estação televisiva terminava o seu - habitualmente interminável - noticiário principal desta noite, declarando, nas palavras de quem o apresentava, que "os portugueses estão de novo convocados". Não, decerto, para exigir o pleno e tempestivo (se ainda o puder ser) apuramento das responsabilidades quanto à monstruosidade de há três anos. Não, decerto, para testemunhar que, aprendendo ao menos com os erros, se fez o exigível para evitar a sua repetição.

O circo da bola volta. Em peso e muito oportunamente. Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma.

12
Jun20

O normal

Costa

Os canais televisivos portugueses - os alegadamente vocacionados para o noticiário - de novo se entregaram incondicionalmente ao futebol. Não me dou ao trabalho de fazer tais contas, mas do pouco que vejo, antes de fugir para outras estações, ou desligar, parece que (como dantes) o jogo em si pouco interessa. Haja escândalo, violência e gastem-se horas a perorar com a solenidade (e a ordinarice, havendo pretexto; e abunda nesta escola de virtudes que é "a bola") que merece um tema crucial para a Pátria. Em torno de não sei que minudência. Talvez da "força anímica".

Os mesmos canais (e, suponho, os outros) noticiam com canina submissão, escrupulosa estupidez e meticulosa correcção política a presente investida mundial dos bárbaros e a generalizada, incondicional e cobarde rendição dos cultos, a pretexto de um homicídio. De um caso de polícia que está a ser aproveitado muito para lá do que significa. E isto não minimiza o horror das imagens conhecidas. Não desculpa o crime. Nem atenua a repugnância que merece esse aproveitamento. Que em todo o caso nada surpreende.

Bola e temas fracturantes (suponho que os "reality shows" e os novos programas de variedades: os concursos de candidatos a cantantes, cozinheiros e afins, estejam também de vento em popa). As agendas dos boçais, dos brutos e dos terroristas abundantemente servidas. 

Por aí, por cá, o novo normal é o normal de sempre.

06
Jun20

D

Costa

6 de Junho de 1944. Americanos, britânicos, canadianos. E não só, em boa justiça. Mas não soviéticos, em qualquer caso. O que bem pode explicar em grande medida o profundo e geral silêncio, por cá, sobre o assunto. Isso e a incultura e falta de memória da comunicação dita social. Além de que os primeiros e os segundos são para insultar e ridicularizar, muito e porque sim, e os terceiros largamente desconhecidos. E o tema (a indignação e os valores que é mandatário ventilar) do momento é outro.

Além de que parece que a guerra heróica se passou bem mais a leste. Naturalmente.

04
Jun20

Capital Verde Europeia

Costa

Nas ruas e naqueles moribundos destroços que definham à míngua de cuidados de quem lhos devia prestar, enquanto são metódica e impunemente violentados por quem os devia estimar - os jardins (ou o que deles vai restando) -, o cosmopolitismo, a civilidade, a enternecedora boa educação do lisboeta e a extremosa competência do seu poder autárquico revelam-se redobradamente, por estes tempos de COVID 19. 

Os bancos de jardim (frequentemente semi-destruídos), e os equipamentos de parques infantis ou de exercício físico, ostentam por todo o lado - enfim, falo do Lumiar e de Carnide - os restos de fitas diligentemente aplicadas para impedir o seu uso neste período de confinamentos e distanciamentos. Não sei se já é permitido - seja lá qual for a base legal para o impedir, minudência de que não cuidam os nossos pastores nestes tempos de denodadas actuações perante o inimigo: "guerra", chamam-lhe - um tipo sentar-se novamente num banco de jardim. Sei, vejo-o todos os dias, que essas fitas há muito se soltaram pela mera acção do tempo, ou pelo sempre louvável comportamento do munícipe-padrão para com os bens públicos, e por estes dias agitam-se ao vento, presas por uma ponta, ou arrastam-se pelo chão.

Lá estão, enfim, as fitas. Na companhia de um novo e abundante lixo: máscaras e luvas descartáveis, evidentemente descartadas. Por todo o lado. Não impedem o que seja e desfiguram o resto.

Fazer fechar bares, cafés, esplanadas, não parece ter impedido ninguém, que verdadeiramente o quisesse, de comprar umas cervejas e coisas afins, juntar uns amigos, conviver e consumi-las (presumivelmente com distanciamento social, claro) em jardins e ruas. Talvez não em pleno dia. Decerto, noite dentro. Cestos de lixo regurgitam dias a fio (ainda hoje) os despojos dessas celebrações. E quando não cabe lá mais nada - ou mesmo cabendo - garrafas vazias, embalagens de pizza, copos de papel amontoam-se pelo chão. O cidadão é, sejamos francos, tendencialmente uma besta e o poder acha-o aliás muito bem: um bruto dá sempre jeito e que não se canse demasiado a pensar; dêem-lhe bola (que finalmente voltou), preferencialmente em ambiente de guerra civil latente, e reality shows. O poder local, ou pela sua vocação de trampolim para outros voos ou por ser sub-financiado (ou ver, digamos, esse financiamento peculiarmente alocado), manda fazer as coisas - em regra tarde e más horas, inaugura-as - com a naturalmente desinteressada pompa que se sabe, e depois deixa-as pacatamente decaír - não cuidando sequer da maçada de garantir a elementar higiene com uma periodicidade minimamente realista.

Ou então está genuína e comoventemente convencido ser verdade isso do lisboeta ter elevado sentido cívico. Em qualquer caso será, acredito - e isto, admita-se, ultrapassará o poder local (em parte, pelo menos) - sempre mais fácil bloquear uma estrada e interrogar o condutor (devidamente bloqueado pelo "aparato policial") quanto ao seu destino e porquê, do que enfrentar um punhado de latagões a meio da noite; latagões libertos do incómodo de se limitarem por um qualquer sentido de civismo e presumivelmente fortalecidos na sua jovial expansividade por algum álcool e/ou outras coisas no sangue. É (ou foi, parece que já acabou isso de fechar as saídas da cidade) mais vistoso para a televisão e, muito importante, não é susceptível de irritar as organizações do costume, não desencadeia, desde logo, as fatais acusações de violência contra certos estes ou aqueles. Mostra serviço largamente aplaudido por quem nestes últimos meses parece ter genuinamente gostado - e continuar a gostar - disso de "ficar em casa" (não fui ver no serão de hoje, mas há bem poucos dias o tal "hashtag", ou lá o que lhe chamam, continuava nas emissões televisivas). 

Há quem viva e prospere em realidades paralelas.

Deve ser graças a essas realidades paralelas que Lisboa é Capital Verde Europeia 2020.

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