Corre por estes dias uma muito grande e muito conveniente - e muito estremecida e convenientemente acarinhada - comoção pela Pátria, a propósito de um acordo relativo ao governo de uma região autónoma. O sr. ministro dos negócios estrangeiros, na ânsia de malhar que lhe é conhecida e que ou é desabrida ou se refugia, hipócrita, em mal sucedidas tentativas de ironia (não a faz quem quer, antes quem sabe, e da arte da retórica parlamentar pouco resta), terá dito hoje, no parlamento, que não seria "fofinho" (creio que foi a expressão) com tiranos. O sr. primeiro-ministro, com a desfaçatez que lhe é tão própria - e em qualquer caso, e até ver, lucrativa - manifestou sobre esse acordo, numa ou noutra entrevista ou declaração, o horror pelo pisar de, parece, uma sagrada linha vermelha. Leio o editorial de um abjectamente submisso e politicamente correctíssimo jornal - cujo único mérito sobrante, desaparecido Vasco Correia Guedes, parece ser o de se não ter, ainda, rendido ao repugnante acordo ortográfico de 1990 - e apercebo-me (nem seria preciso, enfim, ler esse editorial) de um frenético rasgar de vestes onde se aponta aliás, em comoção mal-contida, para um abaixo assinado que tem o seu quê de idiotia útil.
Um acordo à direita (de âmbito regional, note-se; e que, como alguém ontem dizia na televisão - mesmo que criticando-o - deverá significar em termos económicos, e na frieza destes, menos do que o município de Oeiras) desencadeia tudo isto. Um acordo à esquerda celebrado há uns anos e que leva a que o primeiro-ministro desta choldra torpe seja quem é, nada suscitou a não ser o rasgado elogio às capacidades políticas do dito primeiro-ministro. O que se disse sobre a iniquidade do dito acordo rapidamente se esqueceu. Foi metódica e obedientemente levado ao esquecimento.
E daqueles, cada vez menos que podem ter voz pública e não seguem a ordem estabelecida ninguém disse, ninguém diz, de forma clara, explícita, cristalina - a propósito do justissímo horror aos extremos -, que esse acordo à esquerda foi celebrado com quem seguiu e delas nunca se desmarcou taxativamente, e ainda as celebra, ideologias e ditaduras que mataram mais, bem mais, do que, recorrendo ao exemplo clássico do Mal, o nazismo.
Porquê?