Ao bom cidadão português interessa, e muito bem, a sorte das equipas portuguesas nas "competições internacionais" (nem há que dizer de quê, pois presume-se com justificada tranquilidade que se sabe do que seja). Interessa-lhe isso e alguns pormenores - regular e abundantemente servidos - da anatomia da namorada do jogador, bem como os carros, iates e outras minudências da vida deste. Os milhões com que se transaccionam jogadores - é desnecessário dizer de que variante da prática desportiva (não de que "modalidade", pois "modalidades" é tudo o resto de que se fala depois de conhecida e metodicamente discutida a rotina do corte das unhas dos pés do jogador) - também o deixam, ao bom cidadão português, em salivante inveja e imaginação, e são objecto de estremecido cuidado diário pela comunicação dita social. A infinita desonestidade dos dirigentes dos clubes (disso que nem se tem que nomear) é coisa também capaz de inflamar o bom cidadão português. Sempre afirmando, rasgando as vestes, a bondade sem fim do "seu" dirigente e a irredimível maldade de todos os outros - usualmente perfazem, tudo visto, três -; mas como se fala de bola, tudo e todos ficam acima da lei. Enquanto permanecem "presidentes", pelo menos. E, uma vez mais, muito bem.
Haverá talvez alguma vanguarda intelectual; gosta pelo menos de se ver como tal. É muito selectiva quanto ao que mereça a distinção do seu pensamento. Fosse o morto às mãos da "autoridade", no aeroporto, outra coisa que não branco, presumivelmente convencional na sua intimidade e, é de crer, de matriz cultural cristã, reinaria por cá e por estes dias uma justiceira histeria infindável de protesto. Reinaria desde desde que se soube do sucedido. Assim, a coisa fica entre tardios mimoseios de políticos exigindo uns a demissão e negando outros a demissão. O usual em casos que tais. E com a usual inconsequência.
Há dias foi a vez das notícias quanto à menos feliz demonstração de conhecimentos dos nossos miúdos em matemática e ciências. O governo logo lançou culpas máximas e taxativas sobre um ex-ministro; o ex-ministro replicou indignado e com veemência: rituais próprios da coisa. Não difere muito do ritual de duelo oitocentista, em que um rasgão na camisa e umas gotas de sangue, provindas de um golpe menor, repunham a honra das partes, davam a querela por encerrada e verdadeiramente não havia nem vencedor nem vencido. Umas pessoas, é certo, falaram brevemente sobre isso na televisão; enquanto o bom cidadão português mascava, desinteressado, o seu jantar. E umas pessoas terão escrito sobre isso, nos jornais; em colunas que, privadas de sangue e de bola, uns apenas - dos poucos bons cidadãos portugueses que vêem na leitura outra coisa que não uma infinita maçada, muito justamente limitada aos já distantes e escassos manuais escolares (ou talvez nem a esses) -, terão lido. E encolhido em fatalista tédio os ombros.
Há muitos anos já, Alexandre Herculano achou por bem afirmar que "(O) erro deplorável dos adeptos de certa escola é desprezarem a distinção entre o progresso que influi no melhoramento moral e social dos povos e aquele que só melhora a sua condição física". E tinha razão. Sucede porém que o segundo progresso dá generosamente, parece, mais votos.
De modo que "isto dá vontade da gente morrer".