Muro do Caia
Admita-se, no confronto de um e outra será ao conteúdo que deverá ser dada especial relevância. Em regra, pelo menos. Mas sem esquecer a importância da forma, sobretudo em assuntos e momentos especialmente sensíveis. Assim o demonstra o passado recente da Pátria: ainda hoje há um tipo (Salazar será o outro) que tem, pela liturgia consagrada, culpa de tudo o que de mau aconteceu, acontece e longamente acontecerá. E parece que assim é, em razoável medida, por uma menos boa comunicação.
O ministro Cabrita, no seu usual tom de inflamado acólito do caudilho, brandindo o punho e elevando a voz em vibrante paroxismo de vanguarda revolucionária, cheia de certezas e detendo a Verdade, derramou ontem sobre as massas que seriam limitadas "as deslocações para o exterior nos próximos quinze dias de cidadãos nacionais, para os proteger e contribuir para a redução de contágios".
A coisa é um pouco estranha: perante os dados conhecidos da doença, no país, dir-se-ia que não seremos verdadeiramente nós, portugueses, a necessitar de protecção perante o estrangeiro. Não a ponto, pelo menos, de aceitarmos placidamente que seja o nosso poder a impedir-nos de cruzar fronteiras. E sob esse preciso argumento. Enfim, por analogia a coisa assemelha-se ao comportamento de alguém que, tendo feito grossa asneira, se demite, antecipando-se e evitando a humilhação de ser demitido (em todo o caso uma prática particularmente incomum entre nós; por parte do poder, desde logo, e apesar do sucedido já hoje e por iniciativa de figura da administração pública definitivamente não de primeira linha).
Seja como for, isso de proibir ou limitar a saída de cidadãos, "para os proteger", quando o mal extremo reside da fronteira para cá, tem qualquer coisa de fantasia estalinista. A mera geografia não lhe permite chamar "de Berlim", é certo.
Muro do Caia, talvez.