Leio num jornal "online" que um ucraniano terá caminhado centenas de quilómetros, em busca de alguma segurança, acompanhado da sua cadela. O animal terá ferimentos resultantes do longo esforço e de ter passado por áreas onde abundantes destroços de guerra lhe terão provocado lesões nas patas. O dono (deixemo-nos por favor dessas idiotices, fundamentalmente de inútil ociosidade, que pretendem impor o "tutor"), manifestando imensa ternura e grande preocupação pela saúde da cadela, terá solicitado apoio financeiro para os cuidados veterinários que se revelam necessários. Parece que o apelo - "crowdfunding", chama-se-lhe por estes dias - terá sido bem sucedido.
E logo pude ler, em comentário de um leitor desse jornal, a inevitável e indignada referência às crianças que morrem de fome em África (e, já agora, não é só lá) enquanto alguém tem a intolerável ousadia de se preocupar com o sofrimento de um animal dito irracional. Como se a dignidade e a protecção da espécie humana tivesse que ser defendida em oposição - e por exclusão - ao bem-estar de todos os restantes animais. Como se fosse inaceitável, um crime insuportável, que enquanto houver um humano com fome, sem abrigo, sem cuidados de saúde, se preocupe alguém com a condição dos restantes animais. Como se estes fossem culpados da loucura humana e das suas consequências. A loucura do Homem, esse ser alegadamente racional e que parece ver nessa racionalidade todos os direitos e nenhum dever.
Coisa muito em voga nestes tempos em que tanto se critica quem, em idade fértil, acolhe e protege animais e não tem filhos. Talvez fosse, na verdade, preferível cuidar de saber das razões de, nestes tempos, não ter (de não poder ter, de racionalmente entender não ter) filhos. É que nem sempre é por uma eternizada, estúpida, imaturidade que rejeita responsabilidades e tem da vida uma visão mais e mais hedonista (que existe, de facto, e cresce).
Essa, aliás, nem para os animais é boa.