Com pendular regularidade as estações de televisão - talvez não tanto as portuguesas, largamente devotadas com zelo beatífico, por estes dias, ao serviço do incansavelmente abnegado poder de (longo) turno, à absolutamente crucial bola do Qatar, às luminosas e celestiais palavras de certo jogador da bola, e às sempre injustiçadas minorias nunca suficientemente idolatradas (ou seja: o serviço do poder de turno) - trazem à pacatez dos nossos serões as mais terríveis imagens, creio poder chamar-lhes assim, da fome e da doença: as das crianças de rosto emaciado para lá do que as palavras sabem descrever; as das mães em cuja vida o que creio será o pior, a morte - a morte lenta, cristalinamente previsível, horrivelmente penosa, a morte nos seus braços - de um filho, se terá tornado (mas não, decerto, para elas, as mães) uma mera e antecipada rotina estatística. Algures lá, mas não apenas, pelo Corno de África. Lá longe, muito longe, em qualquer caso.
Dessas crianças que por momentos enchem de culpa a garfada que sorvemos à mesa de jantar ou o conforto do sofá em que lidamos com o sono e a tremenda perspectiva da manhã do dia seguinte, nem todas afinal morrerão. Nem todas as que sobreviverão, felizmente, arrastarão sequelas gravemente incapacitantes. Mas muitas, é de temer, nunca escaparão a outra e também terrível fome: a do conhecimento, a da instrução. A do saber. E também por isso viverão amarradas à dependência de ajudas, de auxílios. Na permanente e irreversível condição de refugiados (ou coisa substantivamente equivalente, seja qual for a sua qualificação formal).
Por estes dias, por cá, umas dezenas de criaturas, bem alimentadas, bem agasalhadas, bem equipadas da tecnologia pacificamente tida como de primeira necessidade, dispensadas da preocupação quanto a qual seja (melhor: se, o que será e quando haverá) a próxima refeição; com a cama, a roupa lavada e o banho quente e diário (querendo-o, claro) garantidos, tem ante si duas possibilidades: aproveitar o privilégio - o extraordinário privilégio - de, o resto assegurado, poder estudar e com isso obter credenciais académicas que, a seu tempo, confiram reforçada legitimidade às posições mais temperadas ou mais radicais que entendam tomar; ou inventar uns pretextos para ocupar instalações públicas e faltar e obrigar a faltar às aulas, berrando uns disparates irrealistas que seriam risíveis se não fossem repugnamente ofensivos na sua formulação, uns, e em si mesmos, outros. A imaturidade e ingenuidade da adolescência, mesmo tardia, não explicam nem permitem tudo. Ou não deveriam explicá-lo nem permiti-lo. Será talvez uma manifestação de um culto setentrional, um culto gretiano, sinistro. Em todo o caso com vivo aplauso, até, de servis ministros do governo da nação.
Um culto, parece, pelo que se lê por aí, de "alunes". Alunes. Seja lá isso o que for, sendo certo que "es alunes" param as aulas (as suas e as de alunos e alunas), têm nisso a benção pressurosa do poder (o governamental e o da hierarquia escolar), seguramente não "levam faltas" (muito menos "chumbos") e a comunicação social, a noticiosa e a opinativa, largamente saliva, incontida, em êxtases submissos de adoração perante esses "es alunes". Perante eles e a cúpula de certa organização política que, embora sendo conhecida por leccionar a cátedra da desobediência civil em pueris acampamentos estivais, se limitou e limita, evidentemente, a louvar a decadência. Nada mais.