O incêndio ocorrido na Mouraria, Lisboa, no passado fim de semana, uma tragédia não só nas suas imediatas consequências mas como sinal - um alerta condenado a cair paulatinamente no esquecimento, é de antever, assim que a sua poeira assentar - do que potencialmente a cidade (o país) nos reserva na matéria, levou já à esperada, pois seria mera questão de tempo, indignação perante aqueles que, face a tão evidentes sinais de indigna existência humana, se preocupam com essa bizarria que parece ser a procura do bem-estar animal (do "animal irracional", entenda-se).
Entristece ver pessoas - pessoas cuja dimensão intelectual, desde logo, se respeita - cair neste maniqueísmo: isso de entender que enquanto houver um animal humano em sofrimento nenhum valor tem, pode ter, deve ter a sorte dos outros animais; e que gente delirante, pelo menos, será aquela que com esses outros animais e o seu sofrimento se preocupe.
Revela-nos cada instante de cada dia que a aflição humana tem causa, a grande parte das vezes, na acção humana. É o Homem que largamente por maldade ou incompetência - ainda que a acção da natureza possa ser devastadora e momentaneamente espectacular, como as últimas horas demonstram em terrível dimensão - não sabe cuidar do Homem. Não sabe ou não quer. Reiteradamente.
Deveria isso bastar para moderar os que professam essa tese. Mas não basta e parece até que a reforça. Será então inútil lembrar que arrogando-nos da superioridade de ser dotados da Razão e assim, porque "animais racionais", ocupar com incontestável legitimidade o lugar cimeiro entre a Criação, e dela dispor, essa superioridade não deveria, não deverá, ser vista como exclusiva fonte de direitos, numa perspectiva puramente predatória e instrumental. Essa superioridade acarreta, deveria acarretar, o dever, a responsabilidade de guardar e proteger tudo aquilo, todos aqueles, perante quem nos entendemos superiores. Sem lhes causar outro sofrimento que não o rigorosamente inevitável; até que possa ser evitado e sempre agindo nesse sentido.
Uma evidente, inquestionável e arrepiante tragédia humana (e mais ainda pelo que contém na sua génese de acções e omissões) não pode ser alimento de desprezo humano, de antropocentismo cegamente egoísta, por tudo o resto. Até porque não precisa de desvalorizar tudo o resto, essa tragédia, para se afirmar gritantemente como tal.
E não é preciso ser-se ambientalista radical, vegan ou militante mais ou menos fanático de certas formações políticas para pensar assim. Ou não deveria ser.