Capital Verde Europeia
Nas ruas e naqueles moribundos destroços que definham à míngua de cuidados de quem lhos devia prestar, enquanto são metódica e impunemente violentados por quem os devia estimar - os jardins (ou o que deles vai restando) -, o cosmopolitismo, a civilidade, a enternecedora boa educação do lisboeta e a extremosa competência do seu poder autárquico revelam-se redobradamente, por estes tempos de COVID 19.
Os bancos de jardim (frequentemente semi-destruídos), e os equipamentos de parques infantis ou de exercício físico, ostentam por todo o lado - enfim, falo do Lumiar e de Carnide - os restos de fitas diligentemente aplicadas para impedir o seu uso neste período de confinamentos e distanciamentos. Não sei se já é permitido - seja lá qual for a base legal para o impedir, minudência de que não cuidam os nossos pastores nestes tempos de denodadas actuações perante o inimigo: "guerra", chamam-lhe - um tipo sentar-se novamente num banco de jardim. Sei, vejo-o todos os dias, que essas fitas há muito se soltaram pela mera acção do tempo, ou pelo sempre louvável comportamento do munícipe-padrão para com os bens públicos, e por estes dias agitam-se ao vento, presas por uma ponta, ou arrastam-se pelo chão.
Lá estão, enfim, as fitas. Na companhia de um novo e abundante lixo: máscaras e luvas descartáveis, evidentemente descartadas. Por todo o lado. Não impedem o que seja e desfiguram o resto.
Fazer fechar bares, cafés, esplanadas, não parece ter impedido ninguém, que verdadeiramente o quisesse, de comprar umas cervejas e coisas afins, juntar uns amigos, conviver e consumi-las (presumivelmente com distanciamento social, claro) em jardins e ruas. Talvez não em pleno dia. Decerto, noite dentro. Cestos de lixo regurgitam dias a fio (ainda hoje) os despojos dessas celebrações. E quando não cabe lá mais nada - ou mesmo cabendo - garrafas vazias, embalagens de pizza, copos de papel amontoam-se pelo chão. O cidadão é, sejamos francos, tendencialmente uma besta e o poder acha-o aliás muito bem: um bruto dá sempre jeito e que não se canse demasiado a pensar; dêem-lhe bola (que finalmente voltou), preferencialmente em ambiente de guerra civil latente, e reality shows. O poder local, ou pela sua vocação de trampolim para outros voos ou por ser sub-financiado (ou ver, digamos, esse financiamento peculiarmente alocado), manda fazer as coisas - em regra tarde e más horas, inaugura-as - com a naturalmente desinteressada pompa que se sabe, e depois deixa-as pacatamente decaír - não cuidando sequer da maçada de garantir a elementar higiene com uma periodicidade minimamente realista.
Ou então está genuína e comoventemente convencido ser verdade isso do lisboeta ter elevado sentido cívico. Em qualquer caso será, acredito - e isto, admita-se, ultrapassará o poder local (em parte, pelo menos) - sempre mais fácil bloquear uma estrada e interrogar o condutor (devidamente bloqueado pelo "aparato policial") quanto ao seu destino e porquê, do que enfrentar um punhado de latagões a meio da noite; latagões libertos do incómodo de se limitarem por um qualquer sentido de civismo e presumivelmente fortalecidos na sua jovial expansividade por algum álcool e/ou outras coisas no sangue. É (ou foi, parece que já acabou isso de fechar as saídas da cidade) mais vistoso para a televisão e, muito importante, não é susceptível de irritar as organizações do costume, não desencadeia, desde logo, as fatais acusações de violência contra certos estes ou aqueles. Mostra serviço largamente aplaudido por quem nestes últimos meses parece ter genuinamente gostado - e continuar a gostar - disso de "ficar em casa" (não fui ver no serão de hoje, mas há bem poucos dias o tal "hashtag", ou lá o que lhe chamam, continuava nas emissões televisivas).
Há quem viva e prospere em realidades paralelas.
Deve ser graças a essas realidades paralelas que Lisboa é Capital Verde Europeia 2020.