Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Sobrevive-se

Sobrevive-se

06
Fev23

Da tragédia. Humana ou não.

Costa

O incêndio ocorrido na Mouraria, Lisboa, no passado fim de semana, uma tragédia não só nas suas imediatas consequências mas como sinal - um alerta condenado a cair paulatinamente no esquecimento, é de antever, assim que a sua poeira assentar - do que potencialmente a cidade (o país) nos reserva na matéria, levou já à esperada, pois seria mera questão de tempo, indignação perante aqueles que, face a tão evidentes sinais de indigna existência humana, se preocupam com essa bizarria que parece ser a procura do bem-estar animal (do "animal irracional", entenda-se).

Entristece ver pessoas - pessoas cuja dimensão intelectual, desde logo, se respeita - cair neste maniqueísmo: isso de entender que enquanto houver um animal humano em sofrimento nenhum valor tem, pode ter, deve ter a sorte dos outros animais; e que gente delirante, pelo menos, será aquela que com esses outros animais e o seu sofrimento se preocupe.

Revela-nos cada instante de cada dia que a aflição humana tem causa, a grande parte das vezes, na acção humana. É o Homem que largamente por maldade ou incompetência - ainda que a acção da natureza possa ser devastadora e momentaneamente espectacular, como as últimas horas demonstram em terrível dimensão - não sabe cuidar do Homem. Não sabe ou não quer. Reiteradamente.

Deveria isso bastar para moderar os que professam essa tese. Mas não basta e parece até que a reforça. Será então inútil lembrar que arrogando-nos da superioridade de ser dotados da Razão e assim, porque "animais racionais", ocupar com incontestável legitimidade o lugar cimeiro entre a Criação, e dela dispor, essa superioridade não deveria, não deverá, ser vista como exclusiva fonte de direitos, numa perspectiva puramente predatória e instrumental. Essa superioridade acarreta, deveria acarretar, o dever, a responsabilidade de guardar e proteger tudo aquilo, todos aqueles, perante quem nos entendemos superiores. Sem lhes causar outro sofrimento que não o rigorosamente inevitável; até que possa ser evitado e sempre agindo nesse sentido. 

Uma evidente, inquestionável e arrepiante tragédia humana (e mais ainda pelo que contém na sua génese de acções e omissões) não pode ser alimento de desprezo humano, de antropocentismo cegamente egoísta, por tudo o resto. Até porque não precisa de desvalorizar tudo o resto, essa tragédia, para se afirmar gritantemente como tal.

E não é preciso ser-se ambientalista radical, vegan ou militante mais ou menos fanático de certas formações políticas para pensar assim. Ou não deveria ser.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub