O cidadão descendente.
Início da tarde. Pouquíssima gente no hipermercado. Carro estacionado, subimos à loja pelo tapete rolante; os únicos, minha mulher e eu, no tapete ascendente. Ao início do tapete oposto, um cidadão inicia a descida. Vem lá longe, ainda. Entre ambos os tapetes um outro, central, inactivo. Mais ninguém. E adivinha-se do que já se vê da galeria comercial, lá ao fundo, perto da praça da alimentação (chama-se-lhe assim, creio, nesses lugares), a especial pacatez do lugar, a meio da semana, passada a hora de almoço.
O cidadão descendente, ainda longe - e nunca estaria mais próximo de nós do que uns bons três metros ou mais, calculo, quando nos cruzássemos -, entra então num transe gesticulador: agita os braços, agita muito os braços, aponta não se percebe se para nós, se para ele, se para todos (todos os três, não havia mais ninguém). Não se ouve alarme, não será incêndio; ninguém larga a correr ou grita que se agarre o ladrão, não foi assalto. Mas o cidadão descendente gesticula mais e mais. Com veemência. Conhecer-nos-á? Amizade próxima que apesar da máscara nos reconhece e festeja o encontro? A ele, de máscara, não o reconhecemos. É embaraçoso, não sabemos se devemos corresponder ou aparentar distracção.
Minha mulher olha-me, então. E tudo se esclarece: esquecera, eu, de colocar o certificado oficial de boa cidadania - a máscara! Deixara o carro num parque de estacionamento semi-deserto, subia por um longo e vasto acesso, densamente povoado por três almas e ao fundo do qual se viam bem poucas mais, e a máscara lá ficara, dramaticamente inútil, crucialmente desprezada, inaceitavelmente ignorada, no bolso da minha camisa. Apressei-me, temeroso, varado pela culpa, marcado pelo opróbio a que justiceiramente me votara o cidadão descendente, a colocar a máscara. O cidadão descendente acalmou-se, cumprira a sua obrigação cívica. Olhou em frente, tinha reposto a ordem!
O cidadão descendente não fez um simples sinal, apontando para a máscara; ou para máscara e para mim, por exemplo. O cidadão descendente, tomado de um brioso zelo pela saúde pública, cheio de telejornais, impante de conferências de imprensa, calafetado de declarações dos governantes de turno, robustecido pela sabedorida de horas, dias, uma vida de facebook, justissimamente indignado perante o risco imenso, a tragédia indizível que via desenhar-se ante si, esteve, pareceu-me, perto de fazer uma poderosa espécie de dança da chuva, ou talvez um exuberante ritual de pré-execução pela fogueira de um criminoso sem perdão. Eu. Tivesse ele uma arma e quem sabe...
Governa-se por decreto, ao mais puro estilo de ditadura comissarial (veremos se e quando se extingue ou se paulatinamente evolui, perdendo esses freios de comissarial); enche-se a comunicação social, obediente e acrítica como poucas vezes terá sido e, em qualquer caso, sempre sedenta de sangue e sensacionalismo, de palavras de medo; anunciam-se números "lá de fora", frequentemente descontextualizados mas sempre de horror e medo. O futebol encontrou parceiro na informação e com ele - o bicho - divide aquilo que interessa que os portugueses saibam. E descobre-se - não se descobre: não é novidade, é apenas mais uma demonstração - como o povo abdica facilmente da sua liberdade, como adora a autoridade que o dispensa do fardo de pensar, como pede mais dessa submissão. Como exulta sendo parte dela. Como gosta de apontar um dedo acusador e simplisticamente identificar o mal, as suas causas e os seus efeitos.
O cidadão descendente terá seguido orgulhoso da sua boa cidadania, saciado na grande lição que me deu. Eu, "um gajo que [seguramente] merecia um enxerto de porrada e morrer da doença!" Ou pior, havendo. O seu momento de glória cívica há-de o contar, declamando-o entre família e amigos, com orgulho farisaico. E provavelmente com a máscara descaída e o nariz destapado. Em qualquer caso, com a excitação, é bem capaz de espirrar ou tossir incontidamente, numa justificada convulsão do seu nobre espírito. Obedientemente cuidará de o fazer para o braço, para a zona do cotovelo. O mesmo braço com que depois, à cotovelada (esse novo mandamento da etiqueta e trato social), saudará os outros. Mas sempre de máscara.
Um abnegado membro de um Comité para a Promoção da Virtude, ou coisa análoga, se o houvesse. Não espanta que ele, o comité, surja, com esse nome ou outro. Já se esteve mais longe. E corre-se o risco de ser bem aceite.