Para lá da distopia
Esta manhã, ligado o televisor, uma estação vocacionada para a informação exibia demorada reportagem sobre a actuação da PSP no município de Cascais, interceptando e autuando metódica e exaustivamente e, assegura-se, em cumprimento do que por cá submissamente se vai aceitando por "lei", os cidadãos - por definição prevaricadores até prova em contrário - que ousavam estar fora de casa sem motivo "atendível". Pouco depois, consultada a edição "online" de um jornal diário tido como de referência, e reiteradamente insuspeito de maçar verdadeiramente os partidos do lado consagrado como certo, o governo e o sr. presidente desta República, nele se dava notícia de perto de quatro milhões de presumidos desordeiros e anti-patriotas que, em território nacional, terão, horror!, saído à rua no passado sábado. Em tempo de confinamento!
Esta crucial informação (denúncia, dir-se-ia) vejo-a e ouço-a a esta hora, em que volto a ligar o televisão, desenvolvida num noticiário. Nem imaginamos, se de todo com isso nos preocupamos, o quanto de nós revelam telemóveis, cartões de multibanco, sensores de Via Verde; antes mesmo de um sr. agente ou de um sr. guarda mexer um dedo.
Há dias foi a "carta aberta" - e sim, em si mesma absolutamente legítima; ainda que tenebrosa na substância - que, como conviria, passou largamente despercebida das massas, face ao que de facto lhes interessa (as vicissitudes da bola, o "reality show", coisas de densidade afim e pouco mais) e que imputava as maiores malfeitorias à insuportável insolência de questionar as opções do poder de turno. Turno longo e com tendência a perpetuar-se.
Teremos talvez já começado a passar para lá da distopia.